sexta-feira, 9 de maio de 2014

A TORRE: uma faxina necessária



Creio ser impossível olhar com absoluta indiferença para essa foto. O indivíduo, decapitado, aguarda, até que tranquilamente, enquanto sua cabeça é literalmente agitada dentro da máquina de lavar roupas. Seu rosto, num ricto de dor e desespero, deixa claro que, ainda que o corpo não demonstre, o que vai pela sua cabeça é perturbador e, sobretudo, que o processo de higienização não é dos mais confortáveis.
Entre outras possibilidades associativas, essa foto, a TORRE, Arcano XVI do Tarot é a que mais se destaca.
Basta olharmos para a maioria das interpretações artísticas desse Arcano para vermos que o raio divino, o relâmpago da consciência, atinge o topo da torre. E, quase sempre, há uma coroa encimando essa construção que se despedaça, do alto, em consequência de um evento alheio ao seu controle ou à sua vontade. Afinal, quem controla os desígnios divinos?
Se fizermos um paralelo entre a figura humana e a TORRE, veremos que sua posição também é ereta, altiva. Destaca-se da paisagem que a cerca e elevando-se, o mais possível em direção aos céus, à morada dos deuses, ao Olimpo, o Éden onde gostaríamos de viver, semideuses que acreditamos ser. Em nossa volúpia pelo poder, em nossa ambição em sermos donos e senhores de tudo e de todos e, até, dos nossos destinos, construímos um ego de desmedidas proporções. Tão fascinados estamos com nossa estatura e o quanto ela nos permitirá alcançar, que chegamos a nos esquecer da base, do terreno em que nos apoiamos, da fragilidade dos elementos em que nos apoiamos para nos destacarmos dos demais.


Como o Dr. Frankenstein, do romance da Mary Shelley, não sabemos, ao final, o que fazer com o Monstro que criamos, remendando pedaços nem sempre compatíveis e, muito menos, harmoniosos. Nos recriamos, numa reles e ridícula imitação do Criador, nos acreditando os novos Prometeus, capazes de insuflarmos uma pretensa nova vida em nossos pequenos corpos.
Nada permanece inteiro se não for construído com cuidado, técnica, atenção ao detalhe e, sobretudo, seguindo um plano bem desenhado e usando material de primeira. Lembram-se da história dos 3 Porquinhos e o Lobo Mau? O único que não teve sua casa destruída pelo sopro do lobo foi aquele que a erigiu com tijolos, madeira, argamassa e telhas. Ou seja, ele não optou por um simples e eventual abrigo, feito às pressas e descuidadamente, como os seus irmãos, que pensaram apenas no imediato, na situação presente. Ele, Prático (esse era o seu nome, e não é por acaso...), sabia que o lobo era mais forte, mais ladino, mais perigoso e que não seria uma única vez que esse embate entre eles se travaria. Construiu, conscientemente, pensando no futuro, na durabilidade, na relação custo-benefício que isso lhe acarretaria a longo prazo. E, portanto, foi o único que venceu as ameaças que, tão inteligentemente, soube enfrentar. 


A TORRE sendo destruída por um fenômeno que vem do mais alto, bem mais alto do que ela, simboliza um momento de verdadeira libertação dos indivíduos que estão emparedados por aquelas paredes, alheios à realidade que os cerca, protegidos apenas por suas fantasiosas pretensões, sua elevada autoestima, seu desconforto em reconhecer-se parte daquilo do qual ele tenta se isolar. A catástrofe o derruba do alto de seu castelo de areia e o obriga a colocar os pés no chão, na realidade.
Adeus delírios de grandeza. Adeus complexo de superioridade. Adeus Monstro feito de retalhos e sem alma. É chegado o momento de se olhar de frente para um espelho e perguntar-se "Quem sou eu, de verdade?"
Difícil? Doloroso? Assustador? Com certeza. Mas necessário. Deve ser o mesmo que a roupa suja, com traços de perfumes caríssimos, restos de alimentos sofisticados, dos elogios recebidos, das grifes que representam o status de seu dono e o suor de festas intermináveis pensaria se possível isso fosse, ao ser colocadas numa máquina de lavar. Mas de lá elas sairão renovadas, livres de todos esses pretensos atributos, novamente colocadas diante das funções que melhor exercem e onde se reconhecem: uma camisa é só uma camisa, e por aí adiante.



Esse homem da foto aguarda essa mesma faxina. 
 Aguarda ter todos os andaimes e muletas que sustentam um indivíduo que não é mais ele, mas um ser irreconhecível, uma verdadeira colagem de falsos atributos e de absurdas fantasias, serem desconstruidos, lavados num processo de limpeza forçado, ao qual talvez tenha se recusado submeter. Muita agitação, muita trituração, muito sabão e água limpa serão necessários para remover as manchas do seu conhecido complexo de inferioridade, do medo que lhe descubram a verdadeira estatura, da sua eterna busca em "ter" porque não sabe "ser.
Mas ao final do processo, ele, "novo em folha", estará pronto para recomeçar. Às vezes do zero. Às vezes, com alguma sabedoria adquirida. Mas, com certeza, irá reerguer-se, aos poucos, procurando evitar repetir os mesmos erros. 

Que desta vez o faça sem querer surpreender, agradar ou humilhar o vizinho, mas para que sua nova estrutura abrigue um indivíduo melhorado: ele mesmo.

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